Único africano membro da ABL, escritor recebe distinção por seu papel na valorização das questões humanas. Solenidade marcou dia final da 19ª Semuni

Honoris causa também pela Universidade de Maputo, em Moçambique, Mia Couto exibe o título recebido na Universidade de Brasília. Foto: André Gomes/Secom UnB

 

Expoente da literatura moçambicana, o poeta, romancista, contista e cronista António Emílio Leite Couto, mais conhecido como Mia Couto, descreve em um de seus livros o escritor como “um viajante de identidades”, “uma criatura de fronteiras”. Não por menos, ele mantém grande afeto pelo Brasil e por sua cultura, seja pelo apreço às vozes de grandes cantores, como Caetano Veloso, Chico Buarque e Elis Regina ou pelas palavras de escritores de renome, entre os quais estão Guimarães Rosa, Machado de Assis e Clarice Lispector.

 

“O Brasil é uma pátria que inventei para mim. Os que escreviam e cantavam a nação brasileira tatuaram para sempre na minha alma esse sabor de conhecer outro lugar”, declarou, durante passagem pela Universidade de Brasília na 19ª Semana Universitária, encerrada nesta sexta (27), com palestra dele mesmo. Em reconhecimento à sua influência no campo da literatura e a sua atuação humanitária, a UnB concedeu a Mia Couto o título de Doutor Honoris Causa. A solenidade de outorga ocorreu na manhã desta sexta, no auditório do Memorial Darcy Ribeiro – Beijódromo.

 

“Faz todo o sentido estarmos nesta instituição de ensino celebrando a literatura e a poesia. Arte é um modo de entender e expressar o mundo. Arte e ciência nascem do pensamento crítico e celebram a diversidade”, declarou o autor, também formado em Biologia e ativista ambiental. Escritor moçambicano mais traduzido no mundo, com publicações em 24 países, foi vencedor do prêmio Camões em 2013 e está entre os dois autores de língua portuguesa premiados com o Neustadt International Prize for Literature, tido como o Nobel Americano. O outro escritor a receber a honra foi o brasileiro João Cabral de Melo Neto.

Com mais de 30 livros lançados, escritor moçambicano salientou o papel das artes em defesa da sociedade. Foto: André Gomes/Secom UnB

 

Honrado com o título, Mia Couto, que é também membro da Academia Brasileira de Letras, discursou em favor das artes e das ciências humanas e ressaltou as riquezas do povo brasileiro, incluindo entre elas a diversidade racial e religiosa. “A grande riqueza de uma nação são as pessoas, com sua criatividade, sua eterna festa e sua imaginação”, afirmou. O defensor da democracia e da liberdade deixou uma mensagem de união e de luta pela equidade. “Esperamos que os escritores e as universidades possam contribuir, sem medo e sem censura, para uma sociedade mais humana e mais justa.”

 

À frente da cerimônia, a reitora Márcia Abrahão mencionou que a proposição do título reforça o papel de vanguarda da Universidade de Brasília na formação cidadã e humanista, como preza Mia Couto e, também os fundadores da instituição, Darcy Ribeiro e Anísio Teixeira. A gestora lembrou o atuação essencial da classe artística e da universidade na consolidação da democracia no Brasil, considerada ainda jovem, assim como em Moçambique. Ao novo honoris causa, agradeceu as contribuições deixadas nesse âmbito. “As reflexões que a sua literatura provoca e o seu comprometimento com a construção de uma sociedade mais justa, humana e democrática nos engradece.”

 

AFRICANIDADES – Natural de Beira, cidade ao litoral moçambicano, Mia Couto decidiu se aventurar no universo da escrita ainda jovem e descobriu nele sua verdadeira paixão. As vivências no país inspiram suas narrativas, que entrecruzam o recente passado colonial, as adversidades contemporâneas e as riquezas da região austral africana. Moçambique também está presente em suas histórias com um olhar de sensibilidade, atento à figura humana pela ótica da cotidianidade e da diversidade étnica, linguística e cultural local, mas também da memória, mitos, ritos de matriz africana.

 

“Mia Couto é um cidadão da república mundial das letras, um artífice da palavra, que transforma em arte literária as contraditórias dimensões da condição humana, a partir do seu referencial africano primordial”, descreveu o professor do Instituto de Letras (IL) Edvaldo Bergamo. Membro da comitiva do homenageado e orador da solenidade, o docente resgatou a poética para expressar o apreço pelo trabalho e pela figura do escritor com grande prestígio na literatura de língua portuguesa. 

Formado por estudantes refugiados e imigrantes, o Coral Hamaca alegrou a solenidade com canções de países africanos e latino-americanos. Foto: André Gomes/Secom UnB

 

O trânsito de suas produções pelas contradições observadas na sociedade moçambicana, demonstram, na visão de Bergamo, a capacidade do autor de imergir nas entranhas de seu país. “É a jovem nação das províncias mais distantes, das aldeias isoladas, dos antigos régulos tiranos, dos costumes tradicionais em mutação, das dificuldades materiais persistentes da miséria, pobreza, descaso e solidão, mas também da imensa riqueza, dos enormes recursos naturais, hibridismos diversos, aculturações e transculturações comuns ao mundo moçambicano”, enfatiza.

 

Versatilidade artística, criatividade e ousadia no trato da linguagem são outras marcas frisadas pelo docente como próprias da escrita de Mia Couto, sempre na fronteira da criação artística. “Seus romances e contos figuram as vicissitudes da moçambicanidade entre história e estórias, entre fato e ficção, verdade e imaginação, racional e mágico, sonho e fantasia, prosaico e o insólito, nas passagens irônicas, nos desfechos inesperados, nos encantos dos instantes do cotidiano, na engenhosidade da prosa poética”, detalha.

 

Também vinculado ao Instituto de Letras da UnB, o vice-reitor Enrique Huelva expressou seu encantamento com a capacidade de Mia Couto em dar voz àqueles que, normalmente, não são escutados. Contente com a presença do agraciado na Universidade, Huelva fez um pedido: “Que continue nos fornecendo essas vozes, pois nosso compromisso é deixá-las ecoar fortemente em nós."

 

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